domingo, 22 de novembro de 2009

O galo que cantava pra fazer o sol nascer - uma fábula



Era uma vez um galo que acordava bem cedo todas as manhãs e dizia para a bicharada do galinheiro:
 Vou cantar para fazer o sol nascer...
Ato contínuo, subia até o alto do telhado, estufava o peito, olhava para o nascente e ordenava, definitivo:
 Có-có-ri-có-có...
E ficava esperando.
Dali a pouco a bola vermelha começava a aparecer, até que se mostrava toda, acima das montanhas, iluminando tudo.
O galo se voltava, orgulhoso, para os bichos e dizia:
 Eu não falei?
E todos ficavam biquiabertos e respeitosos ante poder tão extraordinário conferido ao galo: cantar pra fazer o sol nascer.
Ninguém duvidava. Tinha sido sempre assim. Também o galo-pai cantara para fazer o sol nascer, e o galo-avô.
Tal poder extraordinário provocava as mais variadas reações.
Primeiro, os próprios galos não estavam de acordo. E isto porque não havia um galo só. Quando a cantoria começava, de madrugada, ela ia se repetindo pelos vales e montanhas. Em cada galinheiro havia um galo que pensava a mesma coisa e julgava todos os outros uns impostores invejosos. Além do que não havia acordo sobre a partitura certa para fazer o sol nascer. Cada um dizia que a única verdadeira era a sua  todas as outras sendo falsificações e heresias. Em cada galinheiro imperava o terror. Os galos jovens tinham de aprender a cantar do jeitinho do galo velho, e se houvesse algum que desafinasse ou trocasse bemóis por sustenidos, era imediatamente punido. Por vezes, a punição era um ano de proibição de cantar. Sendo mais grave o desafino ameaçava-se com o caldeirão de canja do fazendeiro, fervendo sobre o fogão de lenha.
 Menino, ou você cocorica direito, como deve, ou o denuncio ao fazendeiro...
A ameaça era suficiente para fazer tremer e obedecer os mais rebeldes.
Quando, pela manhã, não mais se ouvia o cantar de algum galo ao longe, o dono do terreiro observava, contente:
 Com certeza virou canja. Bem feito. Quem mandou cantar diferente?
Depois, havia grande ansiedade entre os moradores do galinheiro. E se galo ficasse rouco? E se se esquecesse da partitura?
Quem cantaria para fazer o sol nascer? O dia não amanheceria. E por causa disso cuidavam do galo com o maior cuidado. Ele, sabendo disso, sempre ameaçava a bicharada, para ser mais bem tratado ainda.
 Olha que eu enrouqueço!, dizia.
E todos se punham a correr, para satisfazer as suas vontades.
O galo, por sua vez, tinha enormes oscilações emocionais. Pela manhã, depois de o sol nascer, sentia-se como um deus, onipotente e admirado e não era para menos. Mas à noite vinham a depressão e a ansiedade.
 Não posso perder a hora, ele dizia. Se eu não cantar, o sol não vai nascer. E não conseguia dormir um sono tranqüilo. Isto, na verdade, acontece com todas as pessoas que se acham poderosas assim. Paira sempre sobre elas a ameaça de fim do mundo.
Aconteceu, como era inevitável, que certa madrugada o galo perdeu a hora. Não cantou para fazer o sol nascer.
E o sol nasceu sem o seu canto. O galo acordou com o rebuliço no galinheiro. Todos falavam ao mesmo tempo.
 O sol nasceu sem o galo... O sol nasceu sem o galo...
O pobre do galo não podia acreditar naquilo que seus olhos viam: a enorme bola vermelha, lá no alto da montanha. Como era possível?teve um ataque de depressão ao descobrir que o seu canto não era tão poderoso como sempre pensara. E a vergonha era muita.
Os bichos, por seu lado, ficaram felicíssimos. Descobriram que não precisavam do galo para que o sol nascesse. O sol nascia de qualquer forma, com o galo ou sem o galo.
Passou-se muito tempo sem que se ouvisse o cantar do galo, de deprimido e humilhado que ele estava. O que era uma pena: porque é tão bonito. Canto de galo e sol nascente combinam tanto. Parecem que nasceram um para o outro.
Até que, numa bela manhã, o galinheiro foi despertado de novo com o canto do galo. Lá estava ele, como sempre, no alto do telhado, peito estufado.
 Está cantando para fazer o sol nascer?, perguntou o peru em meio a uma gargalhada.
 Não, ele respondeu. Antes, quando eu cantava para fazer o sol o sol nascer, eu era doido varrido. Mas agora eu canto porque o sol vai nascer. O canto é o mesmo. E eu virei poeta.

Alves, Rubem. Estórias de bichos. São Paulo: Edições Loyola, 1992.

Adoro este texto é uma fabula recheada de elementos para serem pensados. Já utilizei em diversos trabalhos, com a terceira idade, em aulas do curso fundamental, em grupo de formação de professores, palestra espírita, seminário na semana de filosofia da UESC e sempre funcionou super bem.

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